A repórter, escritora e documentarista Sônia Bridi será homenageada na 45ª edição do Prêmio Vladimir Herzog pela grande contribuição ao jornalismo ambiental e às causas relevantes da justiça social, direitos humanos e democracia.
Nesta entrevista, ela fala sobre o reconhecimento, conquistas e desafios da carreira, além da experiência na produção do documentário Vale dos Isolados: O Assassinato de Bruno e Dom e as cenas chocantes que viu na Terra Indígena Yanomami, em Roraima.
- Em primeiro lugar, parabéns pelo reconhecimento. Como recebeu a notícia sobre a homenagem na 45ª edição do Prêmio Vladimir Herzog?
O prêmio Vladimir Herzog é o maior reconhecimento profissional que um jornalista pode ter no Brasil. Por ser um prêmio que leva o nome e a história de um jornalista morto pela ditadura, por ser fruto de um conselho que reúne as principais entidades relacionadas a democracia, direitos humanos e liberdade de informação, e ser um prêmio dos jornalistas para jornalistas. Quando recebi a notícia fiquei feliz e assustada. É preciso muita responsabilidade para honrar essa homenagem.
- Quais foram as principais conquistas da sua carreira? E as dificuldades? Combater o negacionismo relacionado às mudanças climáticas continua um grande desafio?
Acho que se tenho algum mérito é perceber e me dedicar a assuntos que vão nos impactar em longo prazo. Quando quis ser correspondente na China, me olhava como se eu estivesse mudando para Marte. No começo deste século a China era vista pelos brasileiros como um fim de mundo que não merecia nossa atenção. Eu estava acompanhando as notícias pela imprensa internacional e entendi que o que estava acontecendo na China iria impactar profundamente nossas relações de trabalho, nossos empregos, importações e exportações, a capacidade da nossa indústria de permanecer existindo. E impactaria também no clima da Terra, seja pela produção de energia para tocar o chão de fábrica, seja pela abertura de novas áreas agrícolas para alimentar sua superpopulação. O mesmo eu via em relação às mudanças do clima, com impacto sobre todos os aspectos da nossa vida. Então, acho que minhas principais conquistas foram convencer meus editores a investirem nessas pautas. Meu argumento era sempre o mesmo: jornalismo não é só o que as pessoas querem saber, é o que precisam saber para tomar decisões informadas sobre seus futuros.
- O filme “Vale dos Isolados: O Assassinato de Bruno e Dom”, lançado em junho deste ano, foi seu primeiro trabalho como documentarista. Como foi essa experiência? Você pretende continuar produzindo documentários?
Eu tinha uma experiência grande na produção de grandes séries para TV. Fiz oito grandes séries nos últimos 12 anos, muitas delas com gravações em vários países. Mas nada se compara a produzir um longa. É um filme, mas é uma reportagem cheia de boxes e destaques. A cada fio que a gente puxava, vinha uma nova história, importante para a compreensão do que nos propomos a contar: por que Bruno (Pereira) e Dom (Phillips) foram assassinados, por quem eles morreram. Passei 70 dias no Vale do Javari. Na segunda viagem (na primeira fui pelo Acre, entrando pelo sul da TI) a equipe de Vigilância da Univaja, que foi montada pelo Bruno e pelo Orlando Possuelo (indigenista), pediu ajuda para conseguir um detector de metais. A água havia baixado e eles queriam fazer buscas nos locais relacionados ao crime, em busca de mais provas. Levamos o detector, mas eu não tinha ideia do que encontraríamos ali. Havia a esperança de recuperar a arma do Bruno, uma pistola, que não foi achada. O que foi encontrado não remeteu ao crime, mas às vítimas. No igapó onde os corpos haviam sido ocultados na noite do crime, estavam óculos, documentos, botas, a carteira de imprensa do Dom, os cadernos que ele usava para anotar suas apurações. Foi um momento tão triste, tão pesado, e ao mesmo tempo carregado de carinho dos amigos deles que estavam ali buscando juntar tudo o que pudesse ajudar a trazer à justiça os responsáveis por esse crime bárbaro. A convivência intensa e longa nos aproxima muito das pessoas. Eu me senti como a guardiã de uma história que estava aos pedaços e precisava ser remontada. É uma imensa responsabilidade. Principalmente quando muitos dos personagens são indígenas isolados. O que eles pensam? Como sentem nossa aproximação? Sabiam que Bruno e Dom foram mortos por causa do trabalho de proteção aos isolados feito ali? Não temos essas respostas, mas podemos imaginar, ouvindo os relatos de quem até bem pouco tempo atrás estava na mesma situação. Foi o trabalho mais difícil que já fiz. E só repetirei a experiência se sentir a necessidade de mergulhar numa história como foi com essa, em que senti que uma reportagem não daria conta.
- Você revelou recentemente que as cenas vistas na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, para reportagem do Fantástico, na TV Globo, foram as mais chocantes da sua carreira. Essa denúncia humanitária foi a maior já feita em uma reportagem sua?
Sim, disparado. Já fiz muitas reportagens em campos de refugiados, em desastres naturais, investiguei abusos das polícias que matam – e como matam! – jovens negros no país inteiro. Mas o que estava, ainda está acontecendo com os Yanomami, não tem comparação. Um processo de genocídio incentivado, apoiado, protegido pelo Estado brasileiro. A tragédia humana ali era um Auschwitz na floresta. A fome, a desnutrição profunda, a contaminação por mercúrio, o adoecimento por álcool, malária, vermes, diarreia e mais tantos males evitáveis. Tudo no nosso tempo. Feito em nosso nome, já que executado com as bênçãos de um governo eleito pelos brasileiros. Não tenho nenhuma dúvida em afirmar que o governo brasileiro promoveu isso. Retirou todos os recursos para que a Polícia Federal e o Ibama combatessem o garimpo. Facilitou os crimes ambientais, principalmente os ligados aos garimpos. Perseguiu servidores públicos que cumpriam seu papel – o Bruno foi um deles. Sinal do profundo racismo que move o bolsonarismo, permitiu que o crime organizado avançasse sobre terras indígenas e quilombos, não importando o custo da vida humana. O Prêmio Vladimir Herzog para a impactante reportagem do Alexandre Hisayasu sobre a fome Yanomami é um testemunho que não podem se esconder com a desculpa de ignorância. Eles sabiam. Escolheram o genocídio.
Nunca vi nada tão horrível como os olhos desesperançados daquelas crianças doentes de desnutrição.
Quando as chamadas começaram a ser veiculadas, a disseminação de mentiras nas redes foi imensa: que sempre morreram indígenas, que eram venezuelanos, que sempre houve garimpo. Reforçamos muito a reportagem com dados, comparações, linhas do tempo. Eu esperava uma tempestade de ataques na segunda-feira. Foi um silêncio imenso. Acho que muitos brasileiros se deram conta do que estava acontecendo de verdade.
- Como você vê a cobertura jornalística dos temas ambientais e de direitos humanos no Brasil?
Acho que avançamos muito. Houve um tempo em que éramos uns poucos, brigando por espaço nas páginas ou minutos no telejornal. Principalmente nas questões ambientais, ou socioambientais. Demorou a cair a ficha de que quando falamos em ambiente falamos de gente, de direitos humanos, de qualidade de vida. Havia em algumas redações um sentimento de que questões ambientais eram “perfumaria”. Não mais.
- Qual a sua recomendação para os jovens jornalistas que querem seguir na cobertura ambiental?
Que corram atrás das pautas. Insistam. Os interesses por trás da destruição das florestas, ataques a indígenas, negacionismo climático etc.são bem articulados e bem financiados. Isso só aumenta a importância de termos mais repórteres trabalhando e fazendo apurações muito rigorosas para expor os crimes socioambientais.