Entrevista: Flávia Oliveira

“A sociedade nunca precisou tanto do bom jornalismo”

A jornalista Flávia Oliveira receberá na próxima terça-feira, 29 de outubro, o Prêmio Especial Vladimir Herzog 2024 em cerimônia na capital paulista. Colunista do jornal O Globo e comentarista da GloboNews e da Rádio CBN, ela foi reconhecida pelas contribuições relevantes para o cenário atual do jornalismo brasileiro, que caminha no reconhecimento da diversidade, inclusão, pluralidade de vozes e de causas. Nesta entrevista, Flávia fala sobre a evolução e desafios da agenda social no jornalismo brasileiro, a contribuição do letramento e ampliação do debate orientado aos direitos humanos, além de sua rotina de trabalho.

1. Como foi receber a notícia de ser reconhecida pelo Prêmio Vladimir Herzog nesta 46ª edição?

Não poderia ter ficado mais feliz. O Prêmio Vladimir Herzog é uma referência, é um selo de qualidade, um atestado de relevância do trabalho jornalístico ligado à defesa dos direitos humanos. Tenho alguns prêmios na minha carreira, que festejo e procuro honrar. Mas esse me faltava (risos). Confesso que recebi com muita alegria, com muito orgulho essa escolha da comissão julgadora. Completei 32 anos de jornalismo. Desde que entrei na área econômica, pelo Jornal do Commercio, em 1992, sempre vivi dessa profissão. Sou uma jornalista preta, de origem periférica – fui criada em um subúrbio de Irajá. Saí de uma condição de vida de muito sacrifício, para uma profissão, para um ofício que me permitiu criar, com muita dignidade e bastante conforto, na média brasileira, a minha filha. Sou hoje avó de um menino de três anos, que já nasceu com muitas possibilidades de escolha, e tudo isso foi o jornalismo que me proporcionou. Mas é muito importante que isso aconteceu sem que eu tenha me desviado da minha origem, da minha história particular, sem que eu tenha dado as costas para o povo que me forjou e que ainda precisa muito de um bom jornalismo, assertivo, atuante, orientado à justiça social, aos direitos humanos. Aos 32 anos de carreira, 55 de idade, ter esse retorno, esse reconhecimento, me deixa realmente feliz, realizada na minha profissão e nos meus propósitos, no meu ativismo.

2. O jornalismo brasileiro evoluiu bastante em relação à pauta social nas últimas décadas, mas ainda temos um caminho muito longo a percorrer. Como você avalia o atual momento dessa agenda e quais os principais desafios?
Sim, eu concordo que o jornalismo ancorado nos temas sociais evoluiu. O jornalismo enfrenta muitos desafios. O século XXI – e esta década, em particular -, tem sido de muito ataque, de muita tentativa de desqualificação, de retirada da credibilidade do jornalismo, de veículos e profissionais da imprensa. Principalmente, mulheres jornalistas, que são atacadas em nome de uma disputa político-ideológica que se impõe de uma forma muito agressiva, desumana.
No entanto, também é verdade que os temas sociais e o exercício profissional orientado aos direitos humanos têm melhorado. Acho que tem a ver com a Constituição de 1988, com artigos muito sólidos na direção de direitos fundamentais. Algumas decisões, por exemplo, do Supremo Tribunal Federal (STF) na direção de assegurar a equidade como o casamento homoafetivo, a política de cotas, a autorização para aborto de fetos anencéfalos e algumas agendas dos direitos sociais. Sem dúvida alguma, isso influenciou o jornalismo. Se a gente faz um exercício de memória, o jornalismo, em larga medida, já encampou a ideia da legítima defesa da honra e hoje a gente fala de feminicídio. Já encampou a demonização, a depreciação, a fetichização das religiões de matrizes africanas e hoje está na linha de frente na defesa da liberdade religiosa. Os direitos sociais, as políticas de transferência de renda, o enfrentamento à fome, à miséria, essa disputa de narrativa em relação a essa agenda já foi incorporada pelo jornalismo de uma forma mais humana e justa, de aprovação à política social. Incluo também o direito dos povos tradicionais e nativos. Também isso sofreu uma alteração. A questão ambiental, conceitos que foram amadurecidos e incorporados à cobertura. Vejo, de fato, muitos avanços nesse sentido, dos instrumentos que a sociedade produziu e como o jornalismo acolheu esses temas.
Temos os desafios dessa disputa política que mencionei, os desafios de enfrentar a desinformação, a violência, o assédio judicial, que é uma realidade no jornalismo. Isso é verdadeiro tanto para os grandes veículos quanto para a mídia independente, que sofre muito com isso. O assédio, a censura por parte de juízes e até colegiados. Não estamos livres disso.
Aprendemos esse repertório ao longo das últimas décadas. Vejo avanço, mas dificuldades financeiras, por exemplo. Me parece que a sociedade nunca precisou tanto do bom jornalismo. Então, alguma solução há de vingar!

3. Há um diálogo hoje intenso e constante sobre questões como racismo e desigualdade social. Você acredita que o letramento a respeito desses temas é suficiente para provocar a mudança necessária que precisamos como sociedade?
O debate social e o letramento são meios. Sem isso, nada vai acontecer. Mas não é só sobre isso. O Brasil é um país patrimonialista, racista, machista. Então, muitas instituições e os poderes se constituíram sobre essa base, esse tripé. É difícil desconstruir isso. E não será desconstruído tão somente pelo letramento dos profissionais de imprensa e pelo resultado de produtos mais orientados a esse tipo de visão.

É importante pensar em democratizar esse letramento. Muitas vezes, as pautas relacionadas a racismo, desigualdades raciais parecem ser monopólio de pessoas pretas que estão nas redações.

E não são, né? O racismo, as desigualdades sociais não foram questões criadas pelas pessoas negras. São apresentadas a partir de uma ideia supremacista de colonização e que privilegiou essencialmente gente branca. A grosso modo, é isso. É injusto quanto se impõe às pessoas negras a responsabilidade de desconstrução dessa mazela estrutural. Então, o letramento não pode ficar restrito aos profissionais ligados às minorias.

Não são só as mulheres que têm de falar sobre violência de gênero, desigualdades, assimetrias no mercado de trabalho. Essa compreensão também é dever dos homens. Não são só os negros que têm de falar sobre racismo. Não são só os indígenas que têm de falar de sua luta por demarcação, por superação dos preconceitos, por direito e liberdade de exercitar e vivenciar sua cultura e tradições.

Então, esse letramento, essa alfabetização também tem de ser universal. Não é somente sobre os grupos afetados.
Mas não é suficiente pensar só no jornalismo. Esse é um trabalho da educação, das escolas. E aí a gente vê a Lei 10.639 e a Lei 11.645 (leis que tornaram obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas) completando 20 anos sem uma aplicação plena. É dever (o letramento) das instituições, do judiciário, legislativo executivo, corporações empresariais. E a gente não vê isso. Passa pela imprensa, mas não se resume a ela e ao jornalismo.

4. Você abriu caminho no jornalismo para que muitas profissionais negras pudessem ser vistas. Como avalia essa representatividade hoje no mercado?
Acho engraçado me pensar como alguém que abriu caminho. Não demarco, não delimito a minha carreira na direção de ser alguém de referência. Mas isso obviamente acontece. Isso ocorreu em 2001, quando me tornei interina da Miriam Leitão – uma grande amiga, uma enorme referência para mim no jornalismo – no jornal O Globo. Isso foi disruptivo, uma jovem negra substituindo a maior jornalista de economia do País, com foto em jornal de grande circulação nacional. Mais tarde, em 2006, tive a minha própria coluna de economia. Hoje escrevo na página 3 do jornal. E desde 2008 na televisão, o que também ajudou muito a inspirar. Tenho esse retorno dos mais jovens e de colegas jornalistas que já estavam no mercado.
Tenho hoje muita convicção em relação ao jornalismo de opinião que faço, justamente pela escassez de quadros. São poucos jornalistas negros de opinião, sejam homens, sejam mulheres. É diferente de ser uma comentarista, articulista, âncora, editora. São papéis muito diferentes. Atuo nessa linha de frente da opinião, que é forma de debater os grandes temas. Isso me permite uma atuação mais ampla e capilarizada. Mas acho que independentemente dessa ainda escassez de pessoas negras no mercado de trabalho e, em particular, no jornalismo de opinião, a gente evoluiu muito. Hoje me sinto muito mais acompanhada de outras colegas, outros colegas.
E isso é muito bem-vindo. Não só para mim, mulheres ou homens negros. Acho que faz muito bem aos veículos também. Não só aos profissionais que estão se integrando como faz bem aos empregadores. Diversidade é justiça social, é inovação, é potência, é riqueza.

5. Você está sempre no ar, seja na TV, seja no rádio. Como é a sua rotina profissional? E de mãe e avó?
Minha rotina é caótica (risos). Trabalho sozinha, não tenho assistente. Desde 2020, além da coluna que escrevo às quintas-feiras para o jornal (O Globo), publicada todas as sextas-feiras, duas participações semanais na CBN e CBN Rio, estou diariamente na televisão: faço Estudio I, Em Pauta e J10, na GloboNews. Às vezes à tarde e à noite. Por isso essa sensação de onipresença (risos).
E tem o “Angu de Grilo” com a minha filha, Isabela Reis. Podcast lançado em 2019. Surgiu em um momento que não era comum mulheres estarem à frente de podcasts, muito menos mulheres negras, que somos nós duas. Tenho muito orgulho porque não é qualquer empreendimento que chega aos cinco anos.
Minha rotina é um pouco de trabalho o tempo inteiro. Acordo e já estou vendo redes sociais, sites, veículos, grupos de WhatsApp. O tempo todo me informando. Durmo e acordo respirando notícias, envolvida com isso.
Isso não significa que não tenha apreço, não valorize e não priorize minha vida pessoal. O trabalho permeia tudo isso, mas eu tenho, sim, espaço para o meu neto. Uma ou duas vezes por semana eu vejo o Martin, uma vez por semana ele dorme na minha casa. Cuido do meu jardim, faço terapia, cuido das minhas obrigações religiosas, encontro meus amigos com menos frequência que eu gostaria, desfilo em escola de samba. Ah, neste ano eu voltei a fazer exercício físico. Tento fazer o uso mais eficiente possível do meu tempo. Tempo é um desafio, um recurso escasso para todo mundo. Para mim, é super escasso, mas eu tento fazer encaixes. E assim vou abrindo janelas e espaço para ter no trabalho uma parte importante da minha vida, mas não toda a minha vida.

6. Que recado você pode deixar aos jovens jornalistas que querem ajudar na defesa da democratização da informação?
Sempre dou o mesmo recado aos jovens. Tenham paciência, o jovem é por natureza impaciente, apressado. Nossos tempos cobram muita impaciência, ainda mais pressa. É um ambiente de muita pressão por sucesso profissional, financeiro, por projeção, em tempo recorde. Então, meu primeiro recado, em particular para os jovens jornalistas, é: tenham paciência.

O jornalismo é uma profissão de pessoas, de profissionais maduros. Então, a gente melhora com o tempo.

A idade nos torna menos ágeis do ponto de vista físico, mas do ponto de vista mental, intelectual, não. E à medida que a gente vai acumulando informação, experiência, vai testemunhando os fatos, a história se desenrolando à nossa frente, a gente fica melhor na profissão. Então, é importante insistir e ter paciência. As frustrações vão existir. Quem me vê hoje dando opinião, pensa: ela é corajosa. Mas precisa entender que esse é o resultado. Essa liberdade, essa pitada de ousadia são resultados de três décadas de carreira. Não comecei assim. Foi uma conquista muito lenta, muito gradual. E é preciso que se entenda isso. É preciso que os jovens, mesmo nas pessoas que eles têm como referência, que admira, que eles se ocupem do percurso e não da chegada, do filme inteiro e não do retrato. A caminhada foi muito longa, foi acidentada, teve alegria, mas teve tristeza, sofrimento, choro, renúncias. É muito importante que os jovens não se iludam com o que estão vendo hoje, sem imaginar que o caminho todo foi muito, muito longo.