Entrevista: Gizele Martins

Gizele Martins, jornalista, comunicadora comunitária e pesquisadora, receberá o Prêmio Especial na 46ª edição do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Assim como Flávia Oliveira e a Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas do Rio Negro, ela foi indicada pela comissão neste ano por causa das relevantes contribuições para o cenário atual do jornalismo brasileiro.

Mestre em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (UERJ) e doutoranda em Comunicação (ECO/UFRJ), Gizele é autora do livro “Militarização e censura – a luta por liberdade de expressão na Favela da Maré” (2019), que está sendo adaptado para o cinema e teatro. Nesta entrevista, a jornalista conta sua experiência como diretora do documentário, avalia o papel do jornalismo na defesa dos direitos humanos e fala da sua atuação na comunicação comunitária.

 

1. Como recebeu a notícia sobre sua indicação para o Prêmio Especial Vladimir Herzog 2024?    
Estou muito feliz com a premiação, é um dos reconhecimentos mais importantes que recebo e estou feliz por recebê-lo em vida e ao lado de coletivos e de jornalistas e comunicadores que fazem parte da luta por defesa dos direitos e da democracia deste país.
É um prêmio de reconhecimento do meu trabalho como jornalista/comunicadora e que faço há mais de 20 anos. É um reconhecimento de um jornalismo que muitas vezes foi criminalizado e negligenciado por eu ser de favela e por eu sempre ter sido muito incisiva com a pauta antirracista e de defesa dos direitos humanos.
Ao longo dessas duas décadas, eu recebi muitos prêmios e homenagens, mas este é o mais importante, pois me coloca no lugar de um reconhecimento do meu trabalho como jornalista e comunicadora comunitária local, nacional e internacional. É um reconhecimento do meu trabalho.
Receber um prêmio com Flávia Oliveira e com a Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas do Rio Negro é uma grande honra. Flávia foi durante um tempo conselheira do jornal O Cidadão, meio comunitário em que me descobri como comunicadora/jornalista e onde atuei desde minha juventude, quando ainda estava no pré-vestibular comunitário do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), na Maré, tentando descobrir qual profissão eu escolheria.
Além de Flávia, receber esse prêmio ao lado da Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas do Rio Negro demonstra a força dessa homenagem e o quanto o jornalismo brasileiro pode estar perto de ser cada vez mais diverso e com a cara do nosso povo. O nosso jornalismo local é coletivo, em rede, em coalizão, comunitário e que defende direitos, território, casa, água, vida e isso é o sentido da comunicação comunitária, uma comunicação ancestral.

2. Como avalia o atual papel do jornalismo brasileiro na defesa dos direitos humanos?
Nosso papel enquanto jornalista é o de escrever, reportar, propagar denúncias para a defesa de direitos, mas também de trabalhar a autoestima e a memória dos nossos povos. Afinal, historicamente, tivemos nossas memórias apagadas neste país que foi fundado no racismo.
Nós, população empobrecida, não temos nem mesmo ainda o direito à casa, à saúde, à segurança, ao lazer, aos nossos territórios.
O papel do jornalismo brasileiro na defesa de direitos é o de ser ético, comprometido com o povo, fazendo um jornalismo que seja cada vez o povo.  Porque quando a gente se coloca nesse lugar de ser também o nosso público-alvo (assim como é no caso da comunicação comunitária) nosso compromisso com o outro vai ser maior, pois não veremos o povo num lugar distanciado, diferente, estranho. Somos parte dessa sociedade e não posso ser antiético.
No entanto, precisamos nos ver como parte dessa sociedade brasileira que – infelizmente – ainda não alcançou os seus direitos. Por isso, insistimos num jornalismo de busca por memória, por justiça, por direitos.
Infelizmente, temos ainda no Brasil uma mídia (comercial/empresarial) concentrada nas mãos de poucos. Além disso, um Brasil que ainda não teve coragem de democratizar a comunicação, o que inviabiliza o trabalho daqueles jornalistas/comunicadores locais que defendem direitos, pois a mídia que ainda tem destaque hoje, é a mídia comercial, ela ainda se coloca como o jornalismo de verdade. Mas o jornalismo é maior que isso, é mais plural e diverso.

3. Conte um pouco sobre o início do seu trabalho pela comunicação comunitária e a atuação com o Fórum de Juventudes, no Rio de Janeiro. 
Iniciei na comunicação comunitária quando ainda estava no curso pré-vestibular comunitário do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), organização que atua com comunicação comunitária, educação popular e memória há décadas na Maré. Estava a escolher uma profissão quando conheci o Jornal O Cidadão, um jornal que circula na Maré desde 1999 e organizado por esta mesma ONG.
Iniciei meu trabalho – ainda muito jovem – denunciando as violações de direitos humanos que ocorriam na minha rua – conhecida como Faixa de Gaza da Maré, pois ali era uma divisa e as polícias entravam para invadir casas e matar nossos jovens negros e favelados. Ao ver aquilo, ao presenciar e muitas vezes – ser violada também – comecei a investigar, relatar e a divulgar chacinas, assassinatos, mas também me envolvia nas manifestações, ao mesmo tempo que as cobria.
Nesta mesma época, me envolvi em diversos coletivos ligados ao movimento de favelas do Rio de Janeiro. Um deles foi o Fórum de Juventudes que acabou em algum momento focando na denúncia sobre as violações relacionadas à segurança pública. Circulávamos nas favelas, fazíamos  relatórios sobre os mais diversos tipos de violações de direitos que nós jovens sofríamos. Fazíamos disso pautas para a defesa de direitos junto aos órgãos públicos.
No mesmo período, conheci a Revista Viração. Com isso, circulei todo o país conhecendo juventudes indígenas, periféricas, faveladas, quilombolas, do campo. Participei de coberturas, oficinas, congressos e tantos outros eventos de mobilizações que pautavam o direito à infância e juventude, além do debate sobre a democratização da comunicação estar sempre presente.
Anos depois, integrei outros meios de comunicação comunitária pelas favelas do Rio de Janeiro. Cobri remoções forçadas, violações de direitos em favelas que sofrem constantes operações policiais e tantas outras temáticas. Com o tempo, passei a ser convidada para falar sobre comunicação comunitária e favelas em diversos outros países. Ao longo desses anos, fui duas vezes à Palestina, além de África do Sul, Namíbia, Colômbia, Equador, Japão, Estados Unidos, Canadá, Suécia, México, dentre outros e hoje integro um movimento contra a militarização, o racismo e o apartheid no sul global.

4. Como podemos definir a comunicação comunitária hoje no Brasil? 
Sempre tivemos dois lados no jornalismo brasileiro. De um lado, temos a mídia comercial/empresarial que continua nas mãos de homens brancos/donos do poder. Do outro, temos uma diversidade de produções de mídias comunitárias espalhadas pelas favelas, periferias, quilombolas, aldeias, campo. Com ousadia podemos dizer que somos a comunicação em massa desse país e a partir de uma diversidade jornalística que é local e em defesa da vida.
Hoje, estamos cada vez mais avançando no debate de que um conceito apenas não nos define. Por isso, estamos organizados cada vez mais em rede, em coalizão, dizendo que o nosso jornalismo é periférico, favelado, quilombola, indígenas, rural. Essas definições demarcam os nossos lugares, nossas diferentes linguagens, culturas, dialetos, estéticas. É a cara do país. Com essas definições, nos colocamos como trabalhadores da comunicação comunitária, como profissionais, como jornalistas, e isso amplia ainda mais a busca por direitos dentro da área da comunicação no Brasil.
Além disso, fomos nós, jornalistas/comunicadores desses locais empobrecidos espalhados pelo Brasil, que fizemos atuações de combate às fake news e à fome durante todo o período da pandemia da Covid-19.
No período da pandemia, saímos do lugar de comunicador e atuamos na defesa da cidadania no seu lugar mais prático. Fizemos planos de comunicação com linguagem adequada local, mobilizamos nossos territórios. Reunimos  recursos para conseguir cestas básicas, remédios, máscaras. Ou seja, saímos do lugar de comunicador e viramos – de alguma forma – lideranças políticas locais. O que nos trouxe inúmeros desafios e problemas, mas fomos nós, comunicadores, que nos auto-organizamos na pandemia para combater as fake news em um dos períodos mais difíceis da história recente.
Ou seja, a comunicação comunitária mobiliza ideias para mobilizar práticas ideológicas. Hoje, alcançamos um novo lugar, mas precisamos ainda ser reconhecidos e respeitados pelo Estado Brasileiro. Queremos reparação às rádios comunitárias, queremos o direito à comunicação, fomento, políticas públicas e liberdade de expressão.

5. Como você vê o avanço da pauta social no país de uma forma geral? Quais os caminhos e desafios dessa agenda? E como analisa alguns retrocessos ocorridos nos Estados Unidos, por exemplo? 
Temos avanços, mas muitos retrocessos também. Na Maré, durante a pandemia da Covid-19, fundamos a Frente de Mobilização da Maré para combater as fake news e a fome. Era uma época em que estávamos sendo comandados por um governo de extrema direita, o que nos fez ter pioras na garantia de serviços sociais para as populações negras e empobrecidas do nosso país. Vi isso de perto na Maré, por isso, ainda hoje esse coletivo atua não só na produção da comunicação comunitária, mas no combate à fome com uma Cozinha Solidária que atende cerca de 300 pessoas por dia desde o final de 2020. A fome que atingiu a Maré afetou o país inteiro. Além dela, tivemos o genocídio de mais de 700 mil pessoas por causa das notícias falsas sobre a Covid e pelo atraso na vacina.
Hoje, pelo menos no Rio de Janeiro, vejo as favelas sofrendo cada vez mais com operações policiais. Na Maré tivemos quase 40 só neste ano, além das remoções forçadas que voltaram a ocorrer nas favelas e periferias do Rio. O avanço que vejo é, por exemplo, a mudança de nomenclatura depois de quase 50 anos, pois as favelas eram chamadas até este ano de aglomerado subnormal e tivemos a mudança para favelas e comunidades urbanas, o que é uma vitória do movimento social. Vejo mais movimentos sensíveis à pauta dos direitos humanos, da favela, mas ainda sem muitos diálogos com os governos.
Em relação à política internacional, estamos assistindo pela primeira vez um “genocídio televisionado” em Gaza, na Palestina. Estive no país duas vezes, fui a convite para entender que as mesmas armas que os matam, também nos  matam aqui, nas favelas cariocas. São os mesmos caveirões, as mesmas técnicas, os mesmos financiadores de genocídios, que fazem isso para dominar terras e controlar movimentos insurgentes ao redor do mundo. Os Estados Unidos e o Estado israelense são os maiores financiadores desses genocídios.
Mas temos em perspectiva uma luta internacional que pede embargo militar a Israel, temos lutas hoje conjuntas pela garantia dos direitos. O principal deles é o direito à vida. O movimento de favelas do Rio é parte dessa luta que vem sendo construída nas últimas décadas junto aos países latinos, África do Sul, Palestina e tantos outros. Ou seja, se os Estados internacionalizam o racismo, a militarização e o apartheid no mundo, é nosso papel internacionalizar a luta pelo direito à vida.

6. Você já disse que brigou muito pelas causas que apoia, principalmente na faculdade. Quais foram os momentos mais marcantes da sua trajetória de luta pela democratização da comunicação?  
Sim, cheguei a ser chamada de criminosa em sala de aula por apenas escrever sobre o direito de ocupar prédios e terras. Afinal, a favela é uma grande ocupação. Quase não me formei, quase não realizei o grande sonho de ser jornalista por causa desse ataque feito por uma professora, pois ela disse que, se eu me formasse, “eu merecia uma cadeia de luxo e jamais trabalharia em grandes jornais porque eu defendo criminoso”.
Também brigava muito por ver em sala de aula a favela apenas no lugar da editoria de segurança pública. A favela não é sobre violência, a favela é cultura, é luta por moradia, saúde, educação, esporte. É sobre memória, diversidade cultural e de identidades.
Quando falavam sobre a favela, ela só aparecia no lugar de violência, de pobreza, de pessoas sem cultura, de pessoas que não faziam parte da cidade. A cada vez que eu via isso, eu questionava – e sigo questionando – cada vez que vejo o lugar que as mídias comerciais e empresariais insistem em colocar a favela.
Tive alguns embates na faculdade, mas chegou a ser também um lugar acolhedor., Ttive muito apoio de professores, alunos e movimentos sociais para conseguir o meu diploma. Anos depois, entrei para a diretoria do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro. Não foi tarefa fácil, pois era época de muitos ataques aos jornalistas, comunicadores populares e comunitários. Era época das grandes manifestações de 2013 e dos megaeventos. Eram muitas as censuras e ataques aos profissionais de comunicação.
Também participei, em 2008, da Primeira Conferência pela Democratização da Comunicação. Antes, fizemos conferências municipais e regionais.; Foi um importante movimento, mas, infelizmente, não tivemos qualquer retorno do governo em relação às nossas demandas.
Outros passos importantes na luta pela democratização da comunicação foram a participação da fundação de inúmeras mídias comunitárias, nas palestras e aulas nas universidades, além das oficinas pelos movimentos sociais do Brasil e em outros países.

7 – Seu livro “Militarização e censura – a luta por liberdade de expressão na Favela da Maré”, de 2019, está sendo adaptado para o cinema e o teatro. Como é ver esse trabalho levado a outros públicos? 
Há exatamente dez anos (2014) eu e um grupo de comunicadores da Maré tivemos a ideia de criar uma página nas redes sociais para denunciar as violações do exército na Maré, que estava prestes a sofrer com a Garantia da Lei e Ordem (GLO). Essa lei foi utilizada na ditadura militar e usada na minha favela na dita democracia brasileira, 2014 era época da Copa do Mundo.
Durante um ano e quatro meses nos deparamos com tanques de guerra nas nossas ruas e com as mais diversas violações de direitos. Pela página, denunciávamos tudo. A página teve grande repercussão, chegando a 1 milhão de visualizações em uma semana.
Por causa do alcance e por termos pautado o poder público e, até mesmo, a mídia brasileira e internacional, fomos ameaçados. Inclusive, tive de me retirar da Maré por seis meses por conta das ameaças.
Desempregada por causa da criminalização, pensei em entrar para o mestrado e escrever sobre essa memória e como nós, comunicadores da Maré, transformamos a criminalização em resistência ao passar dos anos.
A dissertação virou livro e está na segunda edição. Passados dez anos que o exército esteve na Maré, ganhei o primeiro lugar na Riofilme para transformar o livro em filme documental e estou na fase de produção. Além disso, ganhei um edital para transformá-lo em espetáculo teatral.
Estou muito feliz por estar neste momento, trazendo algo jornalístico para a arte, algo que os públicos – da Maré e o brasileiro – vão ter acesso por meio do cinema e do teatro. Algo que lá atrás foi censurado hoje se transformará em arte. É como transformar a censura que sofri em um grito por liberdade. Estou muito feliz por isso! Estou me descobrindo como diretora de documentário, mas também como alguém que pode transformar algo duro em arte e alcançar com leveza outros públicos.