Uma história incrível estava esquecida em uma pilha antiga de documentos do Tribunal de Justiça de São Paulo e em uma pequena residência no interior do Estado: a primeira cirurgia de mudança de sexo no Brasil, realizada em 1971, culminou em um cerco judicial contra médico e paciente.
Waldirene Nogueira, transexual, foi operada pelo cirurgião plástico Roberto Farina e "ganhou asas para uma nova vida” - relatou ela na época. A operação foi precedida de dois anos de acompanhamento médico no Hospital das Clínicas de São Paulo.
Porém, cinco anos depois, em 1976, o Ministério Público descobriu a intervenção e processou o médico por lesão corporal. Waldirene foi considerada vítima, à sua revelia, e chamada de "monstro", "prostituta", "bichinha" pelos órgãos judiciais. Foi, inclusive, obrigada a ser submetida a um exame de IML, assinado por Harry Shibata, em que foi fotografada nua em diversas posições e teve seu canal vaginal medido com uma fita métrica - largura e comprimento.
A apuração envolveu, primeiro, a descoberta e consulta ao processo - três grandes caixas de documentos. Em seguida, houve um trabalho de reconstituição histórica, com a busca pelas principais personagens - estavam vivas? onde viviam? Waldirene, por exemplo, foi encontrada pela reportagem no interior do Estado (o nome da cidade foi e continua sendo omitido para preservar Waldirene), com 71 anos, reclusa, ainda atormentada pelo preconceito e discriminação que viveu quarenta anos atrás.
Waldirene não queria falar sobre o passado, com medo do retorno do "pesadelo" que viveu na década de 1970. "Eu fui pioneira. Segurei bandeira até para quem não me conhece", disse ela. Aos poucos, porém, foi surgindo uma relação de confiança entre a repórter e Waldirene, que aceitou ter sua história contada - mas não quis ser fotografada.
A matéria ainda envolveu pesquisa sobre a história da legislação brasileira relacionada a este tema, bem como sobre a história médica das cirurgias de redesignação sexual. Por fim, foi dada muita atenção à narrativa.
A repercussão da reportagem foi surpreendente. Acessada por mais de 1 milhão de pessoas, a matéria fez com que muitos se aproximassem e se sensibilizassem com a temática trans e também se chocassem com a parcialidade e discriminação judiciais desse processo.
Outra surpresa foi a reação dos leitores da BBC Brasil: nas redes sociais, os comentários foram extremamente positivos a Waldirene - comentários de ódio foram raros. “Fiquei realmente emocionado com a matéria, que mulher forte e corajosa, um exemplo de pessoa que lutava por seus direitos, os quais não foram aceitos na época”, comentou um leitor. “Que vergonha a atuação de quem deveria proteger! Uma mancha na história do MP e da Justiça”, disse outro.
Após a publicação da reportagem, Waldirene recebeu três convites para transformar sua vida em filme, foi chamada para ser homenageada na Câmara dos Deputados em Brasília, obteve atendimento médico especializado e recebeu doação financeira. No entanto, o Ministério Público (ainda) não fez um pedido público de desculpas.
Categoria | Produção Jornalística em Texto |
Ano do prêmio: | 2018 |
Autor(es): | Amanda Rossi |
Título: | Monstro, prostituta, bichinha’: como a Justiça condenou a 1ª cirurgia de mudança de sexo do Brasil e sentenciou médico à prisão |
Veículo: | BBC Brasil - São Paulo/SP |