Entrevista: Fernando Morais

“Para mim tanto faz se é uma rumba ou tiroteio”

O jornalista e escritor Fernando Morais será homenageado da 45ª edição do Prêmio Vladimir Herzog. Com 10 livros publicados, entre eles alguns dos maiores sucessos do mercado editorial brasileiro e traduzidos em 36 idiomas, ele diz que o caminho para grandes reportagens inclui “cavoucar, como se estivesse caçando minhoca para pescar”, alimentar a relação com fontes que abram portas, prestar atenção a assuntos que não estejam na pauta do imprensa, olhar as coisas com outros olhos e alguma dose de sorte.

 

  1. Como foi receber a notícia de que é um dos homenageados da 45ª edição do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos?

 

Todo jornalista se sentiria orgulhoso, feliz ao receber esta notícia. Tomo emprestada uma figura de linguagem do poeta Manuel Bandeira para descrever a emoção:“inchado, como um sapo-boi”. No meu caso, é ainda mais especial porque quis o destino que eu tivesse a oportunidade de conhecer o Vlado.

 

Para mim, ele não é só um personagem da história dos anos de chumbo do Brasil. Ele foi um amigo e companheiro de trabalho.Trabalhamos juntos na TV Cultura, em São Paulo, ambos sob o comando do também jornalista Fernando Pacheco Jordão. Depois voltei a conviver com ele na redação da revista Visão, logo depois que ela foi comprada pelo empresário Henry Maksoud.

 

Na época, a revista tinha o lastro de seriedade do período em que foi dirigida pelo jornalista Said Farhat. Eu fui contratado como subeditor de Cultura e Vlado era o editor. Foram períodos muito bons em que eu aprendi muito com ele. Ele tinha um grau de sofisticação, e de compreensão das coisas muito grande, e eu passei a admirá-lo.

 

O assassinato do Vlado envolveu, além da relação pessoal, um fato dramático. Os agentes que o convocaram a prestar depoimento no DOI-CODI, tinham ido na véspera à minha casa e ao meu local de trabalho, mas não me encontraram.

 

  1. Você diz que em seus livros aborda aspectos da história que não foram revelados pela imprensa. O que lhe permite ir além do que já foi apurado e publicado?

 

Em primeiro lugar, acho que há um grau enorme de dificuldade de obter informações de bastidor, assim, a sangue frio, no ato. Claro que há exceções. O ideal é começar alimentando fontes que abram portas. Acompanhar temas ou personagens que talvez não estejam no foco da imprensa no momento.

 

Certamente, pela influência da minha origem mineira, eu diria que é como procurar minhoca para pescar. Tem que cavoucar. Cavoucando acha. Gosto de um ditado cubano que diz mais ou menos assim: a mí se da lo mismo una rumba o tiroteo (para mim tanto faz se é uma rumba ou tiroteio, em tradução livre). Fantasio que essa frase poderia ser meu epitáfio.

 

Uma boa pauta, muitas vezes, também é questão de sorte, um acaso. Você chega a ela por mera casualidade. Um assunto tromba com você, você tromba com o assunto. Um exemplo? Porque eu iria me interessar pela história de uma comunista, ativista do começo do século passado, que depois iria se envolver com Carlos Prestes? Porque eu comecei a cavoucar e descobrir que ali tinha uma tragédia humana pedindo um autor. Acho que alguém falou comigo sobre ela, talvez o (escritor)Roberto Drummond. Suponho que o padrinho de Olga seja ele.

 

Às vezes, a dica vem de um livro.Corações Sujos, o livro sobre a guerra contra nisseis em São Paulo, no fim da Segunda Guerra Mundial caiu no meu colo quando eu estava pesquisando sobre Assis Chateaubriand.

 

Não é comum furar um repórter que esteja cobrindo um assunto para uma publicação  diária ou semanal. Não há como tentar competir quando se escreve um livro, que pode levar anos para ficar pronto. Mas tem pessoas se dedicando a obter não só fatos ainda não revelados, mas também contradições que na época em que o fato aconteceu não se tinha notícia.

 

 

  1. Seguindo o imperativo “lembrar para não esquecer, para nunca mais repetir”, você diria que os livros reportagem, como os seus, exercem a mesma função da imprensa na defesa da democracia e dos direitos humanos?

 

Acho que há um certo preconceito acadêmico com jornalistas que optam por explorar o universo da história. No entanto, há olhos, olhos, e olhos, e olhos… Cada um, ou cada par de olhos vendo um lado da história, ou um episódio, um aspecto diferente de um personagem.

 

Eu não tenho pretensão de rivalizar com historiadores, levantar tendências, repensar o ideário em torno de uma pessoa ou episódio. Não é a minha praia. Não é questão de ir além do que foi apurado, mas de olhar com outros olhos. Não é uma briga entre historiador e jornalista.

 

  1. Como você avalia a cobertura jornalística dos temas relacionados à democracia e direito humanos?

 

Infelizmente, vejo que tratam estes temas de forma superficial. Fazer um julgamento assim, à queima-roupa, implicaria em julgar apressadamente este ou aquele veículo e não seria justo. Mas temos que perder a inocência e carimbar nas nossas cabeças que: “a liberdade de imprensa está e estará sempre, em qualquer lugar, em Havana ou Washington, a serviço dos interesses políticos e econômicos de quem paga as contas no fim do mês”.

 

  1. O que você recomendaria a um jovem jornalista em início de carreira?

 

Minha recomendação é a leitura de uma biblioteca básica de 30 livros-reportagem indispensável para profissionais do jornalismo de não ficção:

1 – A aventura de Miguel Littín clandestino no Chile – G.G. Márquez (Record)
Reconstrução emocional de uma aventura, driblando riscos e ameaças do poder militar. Relata a visita clandestina do diretor de cinema chileno Miguel Littín em 1985 a seu país, sob a ditadura Pinochet, depois de 12 anos de exílio.

2 – A Canção do Carrasco – Norman Mailer (Nova Fronteira)
Um épico americano que transformou a história real do assassino Gary Gilmore, condenado à cadeira elétrica, em uma potente balada sobre o amor, violência e morte. Valeu ao autor o prêmio Pulitzer de 1979.

3 – A Ditadura… (I, II, III, IV e V) – Elio Gaspari (Intrínseca)
A mais aclamada obra sobre a ditadura militar de 64 no Brasil. Concebido a partir de centenas de entrevistas e de documentos secretos legados ao autor pelo general Golbery do Couto e Silva. Cobre todos os anos do regime militar. Fundamental para a compreensão da história recente do Brasil.

4 – A festa do Bode – Vargas Llosa (Alfaguara)
A Festa do Bode é um dos livros mais importantes do peruano Mario Vargas Llosa. Com uma pesquisa histórica rigorosa e uma preocupação obsessiva pelos detalhes, ele recria uma República Dominicana para recontar a história do general Rafael Leônidas Trujillo – o Bode – que culmina com o assassinato das irmãs Pátria, Minerva e Antônia Mirabal, opositoras da ditadura.

5 – A grande guerra pela civilização – David Fisk (Planeta)
Mescla de relato de guerra e memórias do jornalista britânico David Fisk, que entrevistou Osama bin Laden três vezes e passou as últimas três décadas embrenhado nos campos de batalha do Oriente Médio. O livro é um apaixonado grito contra as mentiras que mandaram soldados para a morte e mataram milhares de homens e mulheres ao longo do século passado.

6 – A sangue frio – Truman Capote (Companhia das Letras)
Relata o brutal assassinato de uma família no interior do Kansas, desde a ideia inicial do crime até a execução dos assassinos. É considerado um dos pioneiros do chamado “new journalism”.

7 – Aos olhos da multidão – Gay Talese (Companhia das Letras)
Uma série de reportagens também no estilo “new journalism”. Histórias de gente famosa e de trabalhadores anônimos. Um verdadeiro manual de como escrever boas reportagens.

8 -Bom dia para os defuntos – Manuel Scorza (Civilização Brasileira)
Juntando realismo mágico e novo jornalismo, Scorza relata a luta de indígenas peruanos para recuperar suas terras, roubadas com o apoio do governo por grandes latifundiários e por uma empresa norte-americana, a Cerro de Pasco Corporation.

9 – Dez dias que abalaram o mundo – John Reed (Penguin/Companhia)
Narra os acontecimentos na cidade de Petrogrado durante a Revolução Russa de 1917. Foi adaptado para o cinema com o nome de “Reds”.

10 – Um diário do ano da peste – Daniel Defoe (L&PM)
Uma inquietante e informada reportagem sobre a peste bubônica que dizimou setenta mil vidas em Londres em 1665. A tragédia ocorreu seis anos antes do nascimento do autor, que se celebrizou por outro livro, o clássico “Robinson Crusoé”.

11- Dias e noites de amor e de guerra – Eduardo Galeano (L&PM)
Pequenas histórias e relatos vividos pelo autor uruguaio em tempos de violência e intolerância, numa época em que as ditaduras militares com enorme violência ocupavam quase a totalidade dos países latino-americanos.

12 – Esqueleto na Lagoa Verde – Antonio Callado (Companhia das Letras)
Callado, neste livro, conta a história, ocorrida em 1925, em que o oficial britânico Percy Fawcett tenta localizar um Eldorado na selva brasileira, mas acaba desaparecendo misteriosamente para sempre.

13 -Esta noite a liberdade – Larry Collins e Dominique Lapierre (Ediouro)
Livro-documento que descreve com riqueza de detalhes a epopeia do povo indiano e os acontecimentos que resultaram na independência da Índia.

14 -Getúlio (I, II e III) – Lira Neto (Companhia das Letras)
Nesta trilogia o autor acompanha Getúlio Vargas desde suas origens em São Borja até o suicídio em agosto de 1954.

15- Marighella – Mário Magalhães (Companhia das Letras)
Ao contar a história pessoal do líder guerrilheiro Carlos Marighella, o autor traça um painel mais amplo, apresentando a história dos movimentos radicais de esquerda no Brasil e no mundo.

16- Minha razão de viver – Samuel Wainer (Planeta e Amazon)
Relato autobiográfico de um dos mais importantes jornalistas brasileiros, Samuel Wainer, criador do jornal Última Hora. O livro é resultante de uma sucessão de depoimentos gravados por Wainer, editados por Augusto Nunes e pela artista plástica Pinky Wainer, filha do personagem. Reeditado pela Planeta o livro está disponível em sebos digitais e, em e-book, na Amazon.

17 – Notícia de um sequestro – Gabriel García Márquez (Record)
A partir do sequestro de Maruja Pachón e Beatriz Villamizar, em novembro de 1990, este livro-reportagem trata de diversos raptos e aprisionamentos de figuras proeminentes da Colômbia pelos narcotraficantes do Cartel de Medellín, liderado por Pablo Escobar.

18 – O anjo pornográfico – Ruy Castro (Companhia das Letras)
Biografia do dramaturgo Nelson Rodrigues onde o autor mostra os bastidores, o cotidiano, as tragédias e emoções que inspiraram sua vida.

19 – O Imperador – Ryszard Kapuściński (Companhia das Letras)
A partir de criados e serviçais do monarca, o repórter polonês Ryszard Kapuściński retrata o tempo de governo do Imperador Hailé Selassié I, que passou 40 anos à frente da Etiópia.

20 – O rei do mundo – David Remnick (Companhia de Bolso)
Reconstituição da história de Muhammad Ali, o maior lutador de boxe de todos os tempos. Repleto de detalhes saborosos e fotos reveladoras, o livro mostra Ali como uma invenção de si mesmo: desde o menino Cassius e sua infância em Louisville até os treinos obsessivos e a mudança de nome e de religião.

21 – O reino e o poder – Gay Talese (Companhia das Letras)
Neste livro, considerado um clássico do “new journalism”, Talese retrata a história do jornal The New York Times desde sua fundação, em 1896 até atingir o auge de confiança de público e credibilidade de notícias.

22- O verão perigoso – Ernest Hemingway (Bertrand Brasil)
O livro narra a ascensão de Antonio Ordóñez (o filho de Cayetano Ordóñez, o toureiro que havia inspirado Hemingway a criar o personagem Pedro Romero de “O sol também se levanta”) durante a temporada de touradas de 1959 na Espanha.

23 – O voo da águia – Ken Follet (Record)
A história real do megaempresário americano Ross Perot e sua missão para salvar dois reféns do regime dos aiatolás. O romance foi escrito a partir de depoimentos verídicos e narra a operação de resgate que o empresário organizou quando descobriu que dois de seus diretores estavam presos no Irã.

24 – Operación Carlota – Gabriel García Márquez
Extensa reportagem feita por García Márquez para publicação em série em alguns veículos latino-americanos. Trata da participação do Exército cubano na guerra de libertação de Angola. Foi lançada em livro apenas em Cuba, em edição esgotada. Disponível em espanhol, pode ser acessada no link: Operacion-Carlota-Gabriel-Garcia-Marquez

25 -Os sertões – Euclides da Cunha (Penguin/Companhia)
Obra narrativa que mistura literatura, sociologia, filosofia, história, geografia, geologia e antropologia, cujo tema principal é a Guerra de Canudos. Escrito originalmente para o jornal O Estado de S. Paulo, onde foi publicado em série.

26 – Relato de um náufrago – G.G. Márquez (Record)
História real do naufrágio de um destroier colombiano no qual, de oito tripulantes, só um sobreviveu. O título completo, o mais longo de toda a obra de García Márquez, é “Relato de um náufrago que esteve dez dias à deriva numa balsa, sem comer nem beber, que foi proclamado herói da pátria, beijado pelas rainhas da beleza e ficou rico com a publicidade e depois foi malquisto pelo governo e esquecido para sempre.”

27 – Santa Evita – Tomás Eloy Gutierrez (Companhia das Letras)
Este livro é considerado uma das melhores biografias de Eva Perón. Quando ela morreu, em 1952, seu marido, o general Juan Domingo Perón, ordenou que seu corpo fosse embalsamado e exposto à nação argentina numa redoma de vidro. Escrita sob a forma de romance, a obra do falecido escritor argentino é integralmente baseada em pesquisas e entrevistas jornalísticas.

28 – Tiradentes – Lucas Figueiredo (Companhia das Letras)
O autor reconstitui a trajetória do alferes desde a juventude, como mascate, até seu envolvimento na Conjuração Mineira.

29 – Vietnã do Norte – Antonio Callado (Civilização Brasileira)
Resultado da cobertura que o autor fez naquele país durante a guerra, trazendo preciosas informações da selvagem agressividade norte-americana contra o povo vietnamita.

30 – Xá dos Xás – Ryszard Kapuściński (Companhia das Letras)
Retrato minucioso do último monarca iraniano Mohammad Reza Pahlevi, deposto pelos aiatolás em 1979.